Previsto para ser votado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados nesta terça-feira (29), o projeto de lei que perdoa presos pelos atos extremistas de 8 de janeiro de 2023 gera discordância entre especialistas ouvidos pelo R7 quanto à sua constitucionalidade.
O texto anistia “todos os que participaram de manifestações com motivação política e/ou eleitoral, ou as apoiaram, por quaisquer meios, inclusive contribuições, doações, apoio logístico ou prestação de serviços e publicações em mídias sociais e plataformas, entre o dia 8 de janeiro de 2023 e o dia de entrada em vigor desta lei”.
O perdão, conforme o projeto, alcança os “crimes com motivação política e/ou eleitoral”. A anistia abrange “quaisquer medidas de restrições de direitos, inclusive impostas por liminares, medidas cautelares, sentenças transitadas ou não em julgado que limitem a liberdade de expressão e manifestação de caráter político e/ou eleitoral, nos meios de comunicação social, plataformas e mídias sociais”.
O projeto ainda inclui no perdão todos que participaram de “eventos subsequentes ou eventos anteriores” ao 8 de janeiro, “desde que mantenham correlação com os eventos acima citados”.
A anistia, contudo, não alcança os crimes de:
- Prática da tortura;
- Tráfico ilícito de entorpecentes, drogas e afins;
- Terrorismo e os definidos como crimes hediondos;
- Crimes contra a vida;
- Crime contra patrimônio histórico; e
- Crime contra coisa alheia
Para o advogado criminalista Thiago Minagé, o fato de a proposta incluir muitos períodos de tempo na anistia é preocupante. “Quando se tem uma redação genérica, pode se incluir nela o que bem entender”, pontuou.
“A Constituição prevê que a lei precisa direcionar cada tipo de crime. Redações abertas e genéricas pode incluir o que se bem entender. Isso é inconstitucional”, acrescentou.
O relator da proposição, deputado federal Rodrigo Valadares (União-SE), ainda incluiu um trecho que anula as multas aplicadas pela Justiça Eleitoral ou comum às pessoas físicas e jurídicas em decorrência do 8 de Janeiro.
Isso poderia alcançar o PL (Partido Liberal), multado em mais de R$ 22 milhões por litigância de má-fé após a legenda pedir a anulação de votos do segundo turno da disputa presidencial em 2022.
Como a sigla pagou o montante, o valor teria de ser estornado, caso a redação final do texto seja promulgada dessa forma. Minagé diz que esse trecho poderia ser mais claro. “A lei não pode ser aberta, mas precisa, direcionada e objetiva”, observou.
Desvio de finalidade
Professor de Direito Penal na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica), o advogado André Perecmanis avalia o projeto da anistia como “flagrantemente inconstitucional por desvio de finalidade”. “O instituto da anistia deve atender a certos requisitos, dentre os quais o de finalidade. Esse projeto seria casuístico para perdoar determinado viés político, em uma situação em que há afronta, de maneira flagrante, ao Poder Judiciário, violando o equilíbrio entre os Poderes”, analisou.
Para o especialista em Direito Penal, caso o projeto seja aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, “vai ser derrubado no Supremo Tribunal Federal”. “Anistia é para uma situação pontual. Do jeito que está, é um cheque em branco”, destacou.
Doutor em Direito Constitucional, Rubens Beçak, que é professor de graduação e pós-graduação da USP (Universidade de São Paulo), acredita que a anistia é uma “tradição do Direito brasileiro e de muitos países do mundo”. Para ele, trata-se de “passar uma borracha” e estabelecer um “concorde maior no panorama nacional”.
“Isso aconteceu no Brasil depois da Revolução de 1930, quando terminou o Estado Novo, e na anistia de 1969 [Ditadura Militar]. A anistia é o caminho tradicional na história republicana brasileira. É uma possibilidade de acabar com o antagonismo estabelecido na sociedade, que só vem piorando”, defendeu Beçak.
Apesar de alegar que os atos do 8 de Janeiro foram um atentado ao Estado Democrático de Direito, o professor da USP comentou que a anistia proposta pela oposição no Congresso deveria ser mais ampla para, de fato, trazer harmonia ao país. Ele, porém, reconheceu que o texto deveria ser mais explícito quanto a quem, de fato, seria beneficiado.
Crime multitudinário
O projeto inclui um artigo que, se aprovado, derrubaria a principal tese do STF para condenar os presos do 8 de Janeiro: o crime multitudinário — cometido por uma multidão em tumulto, de forma espontânea e organizada. O STF aplicou essa tese para condenar os envolvidos no episódio por atentado ao Estado Democrático de Direito.
Com a proposta em vigor, só poderá haver condenação por tal crime se for individualizada, ou seja, não poderá ter condenação conjunta quando o crime for contra ou para depor a democracia.
Segundo Thiago Minagé, a lei é clara quando prevê que a condenação é direcionada para cada indivíduo. “Se as condenações especificam os crimes, não tem mais crime multitudinário”, explicou. “[Os defensores do projeto] estão misturando os institutos para ludibriar a legislação e se beneficiarem. A questão do crime multitudinário antecede a condenação. Quando há a condenação, não há mais de se falar sobre crime multitudinário”, pontuou.
André Perecmanis alega que o trecho da proposta “ofende qualquer técnica jurídica”, pois alguns crimes podem demandar uma pluralidade de sujeitos. “É impossível imaginar um golpe de Estado praticado por uma única pessoa. É como pensar em uma quadrilha de uma pessoa só”, declarou.
Minagé alega que o Judiciário “fez o que poderia” em um primeiro momento na apuração dos crimes do dia 8, mas, com relação às prisões, ele diz que “faltou dar continuidade na análise individualizada da conduta”. Para Perecmanis, dentro do possível, é exigível que o Judiciário individualize as condutas de cada um.
“É possível que o STF, dentro da peculiaridade do caso, tenha cometido excessos aqui ou ali, mas isso não justifica uma anistia geral e irrestrita. Cabe às defesas fazer esse pleito individualizado dos processos”, analisou.