“Cuidados reais são aqueles que contribuem para o fortalecimento do autoapreço e da autovalorização, gerando bem-estar. Quem vai estar bem ao se odiar? Isso mesmo: ninguém!”
A declaração acima é de Joice Silva dos Santos, ou, apenas, Jô como é, carinhosamente conhecida. Baiana, psicóloga e cabeleireira há 15 anos, ela é fundadora do 1º Salão de Beleza especializado em cachos, crespos e ondulados da cidade de Parnaíba, no litoral do Piauí.
Arquivo pessoal
Essa história começa na infância de Jô. Ao ter os cabelos alisados, com 6 anos de idade, ela não se identificava com a mudança na curvatura do seus fios. Hoje, ela tem a compreensão de que o processo no qual ela era submetida, era e até atualmente, considerado uma forma de se proteger do racismo.
“Aprender a cuidar do meu próprio cabelo foi minha motivação. Minha mãe começou a alisar meu cabelo quando eu tinha aproximadamente 6/7 anos, óbvio que numa tentativa de me proteger do racismo diário que ela já sofria também, como negra e mulher. Nunca estive satisfeita com os cabelos alisados, não me deixavam confortável, e alisar não me protegia de nada, pelo contrário, era “ a neguinha do cabelo alisado”.
Com o passar dos anos, e já envolvida em atividades sociais, Joice se sentiu acolhida e encontrou identificação em mulheres negras que tinham traços e cabelos parecidos com os seus. Nessa caminhada, ela aprendeu sobre Tranças, que reforçam a sua identidade, ancestralidade e empoderamento.
“Várias cores e formatos. Aprendi a trançar meus cabelos e passei a ser transcista também. Fiquei cada vez mais apaixonada pelo meu cabelo e sua versatilidade e percebi que outras pessoas também poderiam buscar esse mesmo “auto-encontro”, quando começaram a me procurar para lhes atender”.
Arquivo pessoal
Entre tranças, cuidados, acolhimento, e incentivo ao autoamor, Joice despertou o olhar para o empreendedorismo. Ainda que não fizesse parte dos seus planos, em 2015, na Avenida São Sebastião, bairro Ideal Center 2, em Parnaíba, nascia o Salão da Preta, que se iniciou em um quarto de casa.
“Ter um negócio nunca passou pela minha cabeça, o plano era seguir a carreira de psicóloga e me manter nos movimentos sociais na luta por um mundo melhor. O Salão da Preta transbordou além do que eu pensei. O que surgiu como uma demanda de cuidar do meu próprio cabelo e depois caminhou como “atender algumas pessoas” foi crescendo e deixou se ser somente sobre mim, pois eu fui descobrindo nessa caminhada que várias outras pessoas desejam ter o cabelo natural só não sabiam como, pois foram induzidas a acreditar que cabelo com curvatura é ruim, bagunçado, inchado e a única “solução” seria alisar”.
Para além do espaço físico, Joice também estruturou um negócio que uniria seus ideais e transformaria a vida de pessoas, que se tornaram reféns de padrões de comportamento que desvalorizam e desrespeitam suas características naturais.
Arquivo pessoal
“O Salão da Preta surge como uma bandeira de afirmação de que cabelos com curvaturas não são inadequados, que curvaturas são a evidência máxima da diversidade étnica do nosso país e que a cultura do alisamento é mais um desmembramento do racismo buscando apagar a presença de pessoas negras através do apagando estético. Além de um empreendimento, é um ato político , levando em consideração o contexto de uma sociedade que a todo momento busca padronizar as pessoas induzindo-as desejar os mesmos narizes, as mesmas bocas, os mesmos corpos e cabelos…aqui o pilar que orienta nosso trabalho é: valorizar as características únicas que cada cabelo tem e orientar nossas(os) clientes a como mantê-los saudáveis”.
Com tesoura em mãos, produtos adequados e técnicas corretas, o trabalho se expandiu, e sua qualificação também. “Logo, de início todas as minhas técnicas foram desenvolvidas a partir do que validava nos meus próprios cabelos , desde produto, tipo de corte, tipos de finalização, e nessa fase já contava com minha cartela de clientes. Porém, sedenta por conhecimento que sou, busquei mais cursos de mechas, colorimetria, terapia capilar, empreendedorismo, e gestão para estruturar meu salão em nível digno de ser referência no meu campo e região, e hoje ele é”.
Não há nada de errado com os seus cabelos
A mensagem é direta. Mas talvez seja uma das primeiras frases que as clientes escutam. Todas as falas que afetaram a autoestima delas ao longo da vida, são desfeitas a partir do momento em que sentam-se em uma de suas cadeiras.
“Se mais da metade da população brasileira se declara preta/parda, significa que mais da metade desse país vai apresentar algum tipo de curvaturas e traços negros, se o ramo da estética além de não reconhecer, busca apagar esses traços éticos, […] isso gera um mal-estar em massa na maioria da população, isso é gerar adoecimento mental”.
Arquivo pessoal
Empreender é um grande desafio. Ao se engajar na trajetória de construção e estruturação do seu estabelecimento, Joice enfrentou dificuldades, principalmente, financeiras, e ainda se deparou com processo que não é linear. Ademais, o local tem avançado no ritmo do autofinanciamento.
“Um dos maiores desafios é o capital de giro, com toda certeza. O ponto de partida e o ritmo de avanço são diferentes e desiguais quando se empreende sem herança, sem investidores, sem amigos de amigos que vão abrir portas para você ( independe se seu negócio/produto tem qualidade ou não). Por diversas vezes busquei financiamento em bancos e mesmo com dados, relatórios etc. Meu negócio não foi considerado financeiramente viável para participar de oportunidades de empréstimos”.
Em contrapartida, Joice encontrou apoio e incentivo em diversas outras instituições, algumas delas fundadas e lideradas por pessoas pretas.
“Onde recebi qualificação, oportunidade para partição de rodadas de negócios e receber recursos financeiros e de mentorias para avançar. Por exemplo: Fundo Agbara onde recebi mentorias incríveis e fui uma das selecionadoras na rodada de negócios e o Edital Entra na Roda, idealizado pela cantora Iza, Preta hub e IDBR onde fui uma das campeãs. Recentemente participei de programas do SEBRAI-PI, que foram muito importantes e contribuíram para novos passos no meu negócios”.
Para ela, é fundamental a troca de experiências em grupos voltados para mulheres empreendedoras. O compartilhamento de histórias, torna-se um aprendizado. “Para que possamos entender que não está acontecendo apenas com cada uma, mas que há uma estrutura maior que interfere nos nossos acesso e avanços. A rede também se torna campo de aprendizado, trocas de informações de editais, programas e cursos que possam contribuir com nossa jornada”.
Presença e posicionamento nas redes sociais
A comunicação e posicionamento de Joice são vibrantes. Essa voz ecoa também pelas redes sociais, instrumentos não só de ampliação de seu trabalho como também de suas bandeiras políticas, tornando-se aliadas para empreendedores e empreendedoras.
Divulgação
Pesquisas apontam que as pessoas atualmente chegam a passar 9 horas ou mais no celular, e grande parte desse tempo é nas redes sociais. (We Are Social e Meltwater, 2024).
“Estar ausente desse espaço digital é, na lógica atual do mundo que vivemos, não existir. Acredito também ser indispensável que pessoas que empreendem pensem bem sobre qual posicionamento desejam ter na internet, antes de saírem copiando e postando qualquer coisa só porque está viralizado. Você não precisa fazer algo só porque todo mundo está fazendo, isso vale para cabelos, corpos, relacionamentos, negócios … para a vida”.
Para investirem no campo virtual, a dica é segura: “o diferencial para um posicionamento do seu negócio nas redes é autenticidade. Achar modos de passar a mensagem que deseja passar, de um jeito que seja executável, sem ter que fingir ser outra pessoa”.
O futuro
Pensar nos planos e metas para o futuro, é relembrar de onde se partiu e o que se conquistou: mais cadeiras e lavatórios, sistema para registrar de forma personalizada cada cliente, colaboradores (as), e ser uma referência na região.
Atualmente, os objetivos de Joice, a longo prazo, são aumentar a quantidade de atendimentos diários, proporcionar mais contratações de pessoas, e ter um espaço ainda maior. O sonho mais breve é lançar turmas de curso presencial para capacitação profissional por meio de suas técnicas autorais. Isso quer dizer: mais pessoas ofertando serviços que respeitam e não provocam traumas em pessoas com curvatura.
Desse modo, Joice segue fazendo sua parte e cumprindo sua missão de vida. Em paralelo a sua ação individual, ela defende que o Estado e demais instituições garantam o desenvolvimento de mais políticas públicas que possam contemplar mulheres pretas e fomentar sua participação no empreendedorismo.
“[É preciso] rever as métricas que usam para considerarem um negocio viável ou não. Ao construir iniciativas de financiamento buscar pessoas de áreas e experiências variadas para que múltiplos olhares sejam considerados nas análises. Por exemplo: Instituições, como o SEBRAE, fazem eventos, levantam bandeiras de apoio a empreendedores, que querem fortalecer mulheres que empreendem, fortalecer a população preta que empreende, mas onde estão as mulheres pretas nos palcos das palestras que organizam? Onde estão as mulheres pretas nos espaços de liderança? Não estão! Por isso digo que falta diversidade de olhares para fazer o novo vir, para movimentar o que é mais do mesmo desde sempre. Discurso bonito todo mundo escreve, mas o que gera mudança é a prática”.
Com a palavra, Joice Silva. Assista:
Questões históricas e atualidade
A historiadora e consultora de moda, Ana Júlia da Silva Bispo, explica que no processo de “pós-abolição” (a pedido, com aspas), com o recorte para as mulheres pretas, diversas questões relacionadas à falta de assistência reverberam até hoje.
“A pós-abolição é um processo desde aquela questão simbólica que nós sabemos que não existiu, que foi uma questão para efeitos econômicos. Toda a história da nossa população negra é resistência, a gente resiste com a nossa cultura, com a nossa forma de empreender. Nós desempenhamos, infelizmente, alguns papéis que foram colocados e impostos para nós. Essa pós-abolição era uma forma mesmo de sobrevivência porque nós fomos colocados sem assistência. Depois da política de cota, a gente já se vê em lugares que são nossos, sendo ocupados, ainda que seja muito tímido, mas que podemos considerar que já ocupamos outros lugares que não foram impostos”, detalhou.
Arquivo pessoal
Ana Júlia completa que as mulheres pretas não enfrentam apenas os aspectos desafiadores que são comuns no empreendedorismo, há ainda o Racismo, que busca descredibilizar a trajetória de luta. “ O Brasil carrega essa questão do racismo nivelado. Eu tenho várias amigas que são empreendedoras, e as pessoas, infelizmente, chegam com um olhar racista: “Ah, você que é empreendedora, você que é a professora, você que é a cientista?”.
Voltar o olhar para uma mulher preta empreendedora, com seu negócio em expansão, e que construiu um espaço que acolhe e cuida da autoestima de outras mulheres pretas, é revolucionário. O verbo resistir deve ser enfatizado.
“O cabelo crespo e cacheado têm um papel de resistência, principalmente, o crespo. Porque ainda o que é mais “aceitado”, é aquele cacho mais definido. Uso o meu cabelo crespo há mais de 20 anos. Lugares que têm toda uma preocupação com a história, de como se sentir bem, a gente se sente acolhido, é um papel de acolhimento, e também surge com uma reparação histórica”, ressalta.
Preservar o legado de coragem deixado pela ancestralidade é um dos pilares de sustentação para romper as barreiras de uma sociedade desigual.
“Correr e buscar estudar mais sobre aquilo que a gente está fazendo, e que se propõe a fazer. Eu, por exemplo, sou professora e consultora de moda,e eu busco muito estudar essa questão dos corpos, de entender como é que funciona a questão da mulher, da roupa, da moda sustentável. Vamos buscar o conhecimento, que eu acho que é algo que foi negado para a gente há muito tempo, e hoje a gente busca de uma forma assim muito voraz. A palavra é essa”, conclui.
Arquivo pessoal
Afroempreendedorismo
Com relação às ações que contribuem e são voltadas para o incentivo e apoio para o empreendedorismo por mulheres pretas, o Sebrae destaca o termo: afroempreendedorismo. A analista Marianne de Sousa explica que as atividades ocorrem por meio de capacitações e consultorias em geral. Municípios como Monsenhor Gil, Santa Cruz do Piauí e Paquetá, são alguns dos exemplos de lugares acolhidos por essa iniciativa.
Os principais objetivos são:
- Alcançar uma maior representatividade do afroempreendedorismo;
- Desenvolver as competências técnicas e comportamentais das mulheres negras para que elas alcancem sucesso nos seus negócios;
- Estabelecer estratégias de negócio;
- Facilitar o acesso a financiamentos, linhas de crédito e oportunidades de mercado
"Atuação forte também em pequenos municípios, fortalecendo e capacitando mulheres negras dessas regiões e também de grupos quilombolas, onde incentivos são mais difíceis de chegar. O Sebrae oferece apoio através de capacitações, consultorias no geral, em marketing, finanças, precificação, preparando o grupo de mulheres da região de Monsenhor Gil para participarem da Feira Preta, uma feira que fortalece o afroempreendedorismo no estado. Estas ações surgiram depois de visitas in loco, escuta ativa dos grupos de mulheres negras e da percepção que estes grupos precisavam de apoio, incentivos", detalhou.
Imagem ilustrativa/ Freepik
É possível ter acesso às ações por meio do Programa Plural, que trabalha a diversidade, e o Projeto Sebrae Delas, que abrange os grupos sub-representados das Mulheres.
“Também através da nossa Rede de Atendimento: Entrando em contato com o Sebrae (presencialmente, por telefone ou e-mail), as empreendedoras podem buscar orientação e serem direcionadas aos programas e consultorias mais adequados às suas necessidades. As salas do empreendedor, presente em 128 municípios, são nossos parceiros e ativamente realizam ações vinculadas ao Sebrae e realizam atendimento”, destacou.
A entidade coleta dados sobre o perfil das empreendedoras, que ajudam a construir políticas mais eficientes. “Com as ações realizadas, percebemos o aumento da formalização das mulheres envolvidas, e com isso, benefícios previdenciários; alcance à linhas de crédito; melhora na gestão das finanças dos seus negócios; também na área de marketing; Acesso a oportunidades de mercado e destaque dos seus produtos, com maior visibilidade”, pontuou.
Joice relatou sobre a necessidade de mais representatividade em palestras em cursos oferecidos pelas instituições que capacitam e auxiliam empreendedores. Nesse ponto, o Sebrae reforçou que em seus eventos há a presença de diversidade e inclusão, e o objetivo é fortalecer cada vez mais atividades que fomentam a participação de mulheres pretas.
“O Sebrae realiza divulgação direcionada em grupos específicos da comunidade negra, incentivando os cadastros para atuarem como palestrantes. […], recentemente, na última Feira do Empreendedor no Piauí uma das palestrantes principais era uma mulher negra e referência na área de Finanças (Nath Finanças). O Sebrae pretende fortalecer a presença de mulheres pretas nas atividades envolvidas, com ações específicas para o público, promovendo eventos e capacitações direcionadas, a fim de impulsioná-las no mercado. Somos alinhados em capacitar a nossa equipe para um atendimento mais sensível e personalizado às necessidades e realidades das empreendedoras negras, direcionando- as para os recursos mais adequados. Dando referência e destacando cases de sucessos com mulheres negras empreendedoras, como as já destacadas ganhadoras no Prêmio Sebrae Mulher de Negócios de anos anteriores”, conclui.
Panorama do empreendedorismo feminino no Brasil
Publicado pelo Governo Federal, em agosto de 2024, o exemplar Panorama do empreendedorismo feminino no Brasil, mostra o estudo sobre a desigualdade racial no contexto do empreendedorismo. O relatório, que é o resultado de uma parceria entre o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), aponta que são registradas 5 milhões de mulheres brancas empreendedoras e 4,7 milhões de mulheres negras empreendedoras no país.
“O estudo demonstra que as mulheres negras empresárias abrem mais negócios por necessidade em comparação com as brancas, 50% e 35% respectivamente (SEBRAE, 2021). Empreendedoras negras e brancas também se diferem no tempo dedicado aos negócios. Entre as mulheres empreendedoras negras, 59% dedicam menos de 40 horas semanais em seus negócios, e esse número é menor para as mulheres empreendedoras brancas, as quais 49% dedicam menos de 40 horas por semana (SEBRAE, 2021)”, diz.
Os números apontam ainda que há uma diferença considerável quando se trata da análise de renda. A diferença média no rendimento de mulheres pretas é 32% menor em relação às mulheres brancas, o que corresponde a R$ 1.852 contra R$ 2.706. “Esse fato também acontece com o número de funcionários: os dados mostram que apenas 8% dos negócios de mulheres negras têm 11 ou mais funcionários, em comparação com 15% as mulheres brancas nessa faixa (SEBRAE, 2022)”, afirma.