O que poderia ser apenas mais um caso de corrupção em uma estatal pode, segundo o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), revelar uma rede criminosa sofisticada que teria transformado a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) em um balcão de negócios.
No centro das investigações está o servidor Francisco José da Costa, que, de acordo com Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), teria usado a própria família como escudo e ferramenta para lavar milhões de reais em propinas.
Agência Brasil
As suspeitas indicam que suas irmãs, no interior do Piauí, e sua esposa, dona de um supermercado que seria utilizado como fachada, integrariam o núcleo financeiro de um esquema que também envolveria empresas de fachada, políticos influentes e servidores cooptados.
Francisco José transformou suas irmãs e sua esposa em ferramentas do que os promotores chamam de “núcleo financeiro” da organização. Emilene Ferreira da Costa e Maria Emília Neta do Nascimento, residentes em Batalha (PI), movimentaram juntas ao menos R$ 935 mil em propinas. Elas recebiam e pulverizavam os valores ilícitos, repassando pagamentos para outros servidores envolvidos no esquema.
As mensagens de WhatsApp analisadas pelo Gaeco revelam o controle que Francisco exercia. “Faz um pix de 10 mil”, ordena ele a uma das irmãs, indicando a conta de uma servidora da Novacap. Em outro diálogo, repreende a parente por mencionar o nome de quem havia feito o depósito: “Não precisa falar nome!!”.
A esposa, Maria Bernadete Machado, também atuava ativamente. Além de ceder sua conta bancária para transferências, ela é proprietária do supermercado O De Casa, em Batalha, usado para lavar dinheiro. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) identificou depósitos em espécie que ultrapassaram R$ 7,4 milhões em pouco mais de um ano, valor considerado incompatível com a economia de uma cidade de 26 mil habitantes.
Parte dos recursos lavados pela família era destinada a comprar a lealdade de outros servidores da Novacap, como Sosthenes Oliveira da Paz e Renato Sousa Santanna, que recebiam depósitos indiretos para manter o esquema funcionando sem vazamentos.
Carro como “caixa eletrônico” e depósitos em espécie
Além do braço familiar, o grupo se apoiava em métodos tradicionais de lavagem, como o uso de dinheiro vivo.
Mensagens cifradas, com códigos como “vamos tomar um café” ou “entregar documentos”, serviam para marcar os encontros.
Em um dos episódios mais simbólicos, Francisco José enviou uma foto do porta-malas de seu Toyota Corolla aberto, sinalizando o local onde a propina deveria ser depositada.
A confirmação veio durante a operação Alta Conexão, quando os investigadores apreenderam R$ 329.340 em espécie em sua residência.
Empresas de fachada
A engrenagem também incluía firmas fictícias criadas para emitir notas e receber repasses. A DM & Castro Engenharia, por exemplo, pertencia ao servidor Aurélio Rodrigues de Castro e tinha como sede a própria residência dele.
Sem qualquer funcionário registrado, a empresa abriu conta bancária apenas sete dias antes de receber R$ 69 mil de uma das empreiteiras do cartel.
Aurélio só foi registrado como representante bancário dois dias antes da transferência, o que, para o Gaeco, comprova o uso deliberado da empresa como fachada.
“25ª deputada”
Para garantir fluxo constante de recursos, o esquema também precisou se infiltrar na política local. A conexão foi feita por Ivoneide Souza Machado Andrade Oliveira, então secretária da Comissão de Economia, Orçamentos e Finanças (CEOF) da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).
Conhecida como a “25ª deputada” pela influência que exercia, Ivoneide atuava como facilitadora, destravando emendas parlamentares que abasteciam os contratos fraudulentos.
Logo no início da parceria, Ivoneide garantiu a Francisco José: “Pode contar comigo… transito em todas as áreas e gabinetes”. A aliança foi selada com “presentes” e favores. Em dezembro de 2020, pouco depois de receber um desses agrados, ela enviou uma lista de emendas disponíveis que somavam mais de R$ 11 milhões e perguntou sobre o desbloqueio de R$ 1,5 milhão.
A relação de troca era explícita. Em outubro de 2021, Ivoneide pediu um “socorro” de R$ 15 mil, lembrando uma ajuda anterior que recebera para uma viagem a Miami. No dia seguinte, enviou a Francisco documentos sobre a liberação de R$ 1,2 milhão para a Novacap, demonstrando que seu papel era essencial para manter o cartel operando dentro da legalidade aparente.
Corrupção institucionalizada
Para o Ministério Público, o caso da Novacap é um retrato de como a estrutura do Estado foi distorcida para alimentar interesses privados.
O esquema unia familiares, servidores, políticos e empresários, funcionando como uma máquina de desvio de recursos públicos, onde cada engrenagem tinha uma função específica: captar, liberar, lavar e distribuir o dinheiro.
As investigações continuam para rastrear o destino final dos valores e identificar outros beneficiados. O Gaeco já classificou o esquema como corrupção sistêmica, comparando a atuação de Francisco José à de chefes mafiosos pela capacidade de articular pessoas, empresas e instituições em benefício próprio.
A coluna acionou a Novacap, mas não houve retorno até a publicação desta matéria. A reportagem também busca localizar a defesa dos envolvidos. O espaço segue aberto.