As duas votações realizadas nesta quarta-feira (10) na Câmara dos Deputados expuseram, de forma inequívoca, a lógica contraditória que guia não apenas os partidos que se autodeclaram conservadores, como o PL, mas também setores da esquerda, especialmente o PT. A discrepância entre discurso e prática, quando analisada nos dois blocos, revela que a suposta rigidez moral de cada lado vale somente para casos que envolvem o adversário. Quando o acusado é aliado, a régua muda — e muda muito.
A cassação rejeitada de Carla Zambelli e a suspensão aprovada de Glauber Braga funcionam como lentes de aumento sobre a ética flexível que domina o Parlamento brasileiro. A atitude mais correta era a cassação de ambos, embora por situações diferentes, mas com crimes que atentam contra a própria condição de parlamentar prevista em Lei.
Zambelli: o perdão da direita e a punição exemplar da esquerda
No caso de Carla Zambelli, condenada pelo STF a 10 anos de prisão por invadir sistemas do CNJ e inserir documentos falsos com o objetivo de abalar a credibilidade da Justiça, os conservadores do PL votaram em bloco para mantê-la no cargo. Foram 73 votos do PL contra a cassação, apenas um a favor. Um alinhamento quase unânime em defesa de uma parlamentar considerada criminosa pelo Supremo e capturada pela Interpol após fugir para a Itália.
Já a esquerda adotou a posição oposta — e, nesse caso, coerente com seu discurso: todos os deputados do PT, PSOL, PCdoB, PV, PSB, PDT, Solidariedade e Rede votaram pela cassação.
Do ponto de vista institucional, a esquerda aplicou ao caso Zambelli a mesma lógica que vinha defendendo desde o julgamento do Mensalão e do impeachment de Dilma Rousseff: condenação judicial definitiva deve resultar em perda de mandato. Não houve dissidência. Não houve relativização. Não houve jeitinho.
Até aqui, coerência.
O caso Glauber: quando a esquerda abandona a régua moral que aplicou a Zambelli
Mas a mesma esquerda que exigiu punição exemplar para Zambelli — e que acusa a direita de proteger criminosos — adotou uma postura completamente diversa quando o réu era Glauber Braga, deputado do PSOL.
Glauber não cometeu crime. Não foi condenado. Não fraudou sistemas públicos nem produziu documentos falsos. O que o trouxe ao Conselho de Ética foram gestos políticos radicais, confrontos verbais, agressões físicas a adversários políticos e atos de protesto, incluindo a ocupação da mesa diretora da Câmara. O parlamentar abusou da chamada "imunidade" de diversas formas e não merecia permanecer no mandato.
Do ponto de vista jurídico e democrático, trata-se de conduta de natureza política, não penal. Por isso, todos os deputados do PT, PSOL, PCdoB, PV, PSB, PDT, Solidariedade e Rede votaram pela suspensão, não pela cassação. E, mais do que isso, participaram das articulações que salvaram o mandato do psolista, inclusive com interações diretas da Secretaria de Relações Institucionais — negadas oficialmente, mas amplamente relatadas nos bastidores.
Aqui, a esquerda abandona a rigidez moral aplicada ao caso Zambelli e adota a lógica política da autopreservação. Se o adversário deve ser punido com o máximo rigor, o aliado deve ser protegido para preservar o capital político-militante que ele representa.
A postura é compreensível politicamente, mas revela incoerência no discurso ético. Se a Constituição deve prevalecer no caso de Zambelli, por que não prevaleceria igualmente em casos de quebra de decoro, quando o acusado é do próprio campo?
A direita performática e a esquerda estratégica: duas incoerências que se completam
No fim das contas, direita e esquerda produziram espelhos distorcidos de si mesmas.
O PL, autodeclarado defensor da moral e da ordem, protegeu uma condenada por crimes graves e tentou cassar um parlamentar por atos políticos.
Inverteu completamente sua lógica moralista e demonstrou que sua defesa das instituições é condicionada à afinidade ideológica.
A esquerda, autodeclarada guardiã dos valores democráticos, votou com rigor máximo no caso que envolvia fraude contra o Estado, mas relativizou a gravidade do ataque ao plenário quando partiu de um dos seus. Aplicou a Constituição em um caso e a política no outro. Ambos os lados, portanto, adaptaram a régua segundo conveniência.
As duas votações revelam mais do que hipocrisia isolada: mostram que há uma ética elástica na Câmara que se ajusta conforme o interesse do bloco, a conveniência eleitoral do momento e o potencial de desgaste político.
A direita usa o conservadorismo como escudo retórico, mas jamais como disciplina interna. A esquerda usa a defesa da democracia como bandeira, mas flexibiliza quando a infração é praticada por alguém de sua própria trincheira. No fim, prevalece uma regra não escrita: as convicções valem apenas para o inimigo.
E enquanto a política brasileira continuar operando por esse duplo padrão, qualquer discurso sobre moralidade pública — seja conservador ou progressista — será sempre percebido como aquilo que, na prática, se mostra: performático, seletivo e profundamente contraditório.