Quando Donald Trump sobe o tom e diz que “qualquer país que trafique drogas para dentro dos Estados Unidos pode ser alvo de ataque”, ele se coloca como xerife moral de uma cruzada contra o narcotráfico. Colômbia, Venezuela, México: todos são apontados como vilões externos que “enviam assassinos” e “envenenam” o povo americano com cocaína e fentanil. Mas essa narrativa, que rende aplauso fácil em palco eleitoral, esconde uma contradição incômoda: boa parte do poder de fogo que sustenta o narcotráfico na América Latina – inclusive no Brasil – vem justamente dos Estados Unidos.
Trump ameaça “atacar” países produtores de drogas, mas não fala uma palavra sobre o contrabando de armas fabricadas em seu próprio território e desviadas para cartéis, facções e milícias em toda a região.
Exemplo claro desta ação está em curso. Estados Unidos mantêm hoje um cerco político e militar sobre a Venezuela, usando o discurso da “guerra às drogas” como principal justificativa. Sob a retórica de combater o narcotráfico ligado ao governo de Nicolás Maduro, Washington reforçou a presença de navios e aviões militares no Caribe e passou a interceptar e atacar embarcações acusadas de transportar drogas rumo ao território americano, muitas vezes sem apresentar publicamente provas consistentes dessas ligações. Na prática, a Venezuela é tratada como alvo preferencial dessa estratégia: é citada em discursos oficiais como “rotas de narcotráfico” e “ameaça à segurança dos EUA”, enquanto navios suspeitos são parados, abordados ou mesmo neutralizados em alto-mar com base em informações de inteligência que raramente são divulgadas em detalhe.
A rota silenciosa: drogas sobem, armas descem
Relatórios da ONU sobre drogas e armas já vêm mostrando há anos um padrão claro:
- A cocaína sai da Colômbia, Peru e Bolívia, passa pelo Caribe, América Central e México e chega aos EUA e Europa.
- Já as armas fazem o caminho inverso: saem em grande parte de estoques civis e lojas legais dos Estados Unidos, são desviadas por contrabando, triangulação e corrupção de agentes e acabam nas mãos dos mesmos grupos que produzem ou transportam drogas.
É a famosa equação da guerra às drogas na América Latina: drogas sobem, armas descem, dinheiro sobe de volta.
No Brasil, investigações da Polícia Federal e estudos de organizações como o Instituto Sou da Paz mostram que armas de fabricação norte‑americana aparecem com frequência em apreensões ligadas ao tráfico de drogas, tanto em favelas do Rio e de São Paulo quanto em fronteiras e rotas usadas pelo PCC e por facções ligadas ao Comando Vermelho. São pistolas de marcas consagradas no mercado civil dos EUA, como Glock e Colt, e fuzis do tipo AR‑15, símbolo da cultura armamentista americana, reaparecendo aqui como instrumentos de massacre em disputas por territórios e rotas de cocaína e maconha.
Não se trata apenas de “alguns contrabandistas isolados”. O próprio governo dos Estados Unidos já admitiu erros graves que ajudaram a armar cartéis. O caso mais emblemático é a operação “Rápido e Furioso” (Fast and Furious), conduzida pelo ATF, órgão de controle de álcool, tabaco e armas. A ideia, oficialmente, era “deixar armas cruzarem a fronteira” para rastrear e desmantelar grandes redes de tráfico no México. O que aconteceu na prática?
- Mais de 2.000 armas compradas legalmente em solo americano foram “deixadas” seguir para os cartéis.
- Muitas delas nunca foram recuperadas.
- Armas dessa operação foram encontradas em cenas de crime no México e nos EUA, inclusive na morte de um agente americano.
Ou seja: enquanto presidentes americanos discursam contra “narcoterroristas estrangeiros”, parte desse terror está armada com produtos made in USA, às vezes com a digital do próprio Estado norte‑americano nos bastidores.
Hipocrisia estratégica: punir o Sul, blindar o Norte
Trump ameaça Venezuela, insulta o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, e acusa o país de ser um “grande negócio de drogas”. De fato, a Colômbia segue como grande produtora de cocaína, e o México é hoje rota central de fentanil, responsável pela maior parte das overdoses nos EUA.
Mas falta à narrativa de força uma peça essencial:
- A demanda gigantesca por drogas está dentro dos próprios EUA;
- O dinheiro que alimenta cartéis e facções também vem, em grande medida, do bolso do consumidor americano;
- E o arsenal que protege esse negócio bilionário tem forte componente de origem norte‑americana, escorrendo de um mercado interno de mais de 390 milhões de armas em circulação.
Trump AT UNGA: President Trump Warns Cartels Smuggling Drugs Into U.S.: “We Have No Choice” | 4K
Enquanto isso, lei federal frouxa, brechas em “gun shows”, vendas sem checagem rigorosa de antecedentes e redes de “compradores de fachada” (os famosos straw purchasers) facilitam que armas legalmente produzidas e vendidas escapem do controle e cheguem ao crime organizado – não só nos EUA, mas em toda a América Latina.
Brasil no meio do fogo cruzado
No Brasil, o efeito dessa hipocrisia é concreto.
Armas que saem de lojas americanas, atravessam fronteiras pelo Paraguai, Uruguai ou rotas marítimas, acabam:
- em comunidades dominadas por facções, onde o tráfico dita regras;
- nas mãos de milícias, que misturam negócios de drogas, extorsão e controle territorial;
- em grupos que disputam rotas na fronteira amazônica, muitas vezes ligados também ao garimpo ilegal e à exploração ambiental.
Cada fuzil AR‑15 que entra no Brasil, cada pistola importada desviada para o mercado paralelo, aumenta o poder de barganha e de guerra do narcotráfico. E isso não é uma “falha latino‑americana”: é um efeito direto de um sistema global em que os EUA exportam armas e, em troca, importam drogas e violência que acabam ricocheteando por todo o continente. Quando Trump diz que “qualquer país que trafique drogas para dentro do nosso país está sujeito a ataque”, ele vende a imagem de um líder disposto a “defender o povo americano” a qualquer custo.
Mas uma política séria de combate ao narcotráfico exigiria, no mínimo, três frentes que raramente aparecem nesses discursos:
- Reduzir drasticamente a demanda interna por drogas, com prevenção, tratamento e políticas de saúde pública.
- Fechar as torneiras do dinheiro e das armas, incluindo regras duras sobre exportação, revenda e rastreio de armamento fabricado nos EUA.
- Cooperação internacional real, com menos bombardeio e mais inteligência, controle financeiro e fortalecimento institucional nos países onde o crime organizado se enraíza.
Sem isso, a “guerra às drogas” vira só palanque geopolítico:
- o Sul global segue como alvo de operações militares e sanções,
- enquanto o Norte mantém o lucro da indústria armamentista e farmacêutica,
- e o crime organizado agradece pelas armas baratas e abundantes.
Traçar o paralelo entre as ameaças de Trump e o contrabando de armas americanas que alimenta o narcotráfico no Brasil e no mundo revela o óbvio que o discurso oficial tenta esconder: não existe “narco” sem arma, e não existe arma em escala industrial sem cadeias legais de produção, venda e omissão regulatória.
Enquanto os Estados Unidos não encararem com seriedade sua responsabilidade como maior produtor e mercado de armas do planeta, toda retórica de ataque a países do Sul soará menos como defesa da vida e mais como teatro para consumo interno, com o preço pago em sangue nas periferias de Bogotá, do Rio, de São Paulo, da Cidade do México – e também nas ruas americanas.