Trump ameaça bombardear quaisquer países “narcos”, mas ignora que armas americanas abastecem o crime que ele diz combater

Enquanto o Presidente dos EUA fala em atacar Colômbia, Venezuela e vizinhos em nome da “guerra às drogas”, o mercado de armas irriga cartéis e facções

Quando Donald Trump sobe o tom e diz que “qualquer país que trafique drogas para dentro dos Estados Unidos pode ser alvo de ataque”, ele se coloca como xerife moral de uma cruzada contra o narcotráfico. Colômbia, Venezuela, México: todos são apontados como vilões externos que “enviam assassinos” e “envenenam” o povo americano com cocaína e fentanil. Mas essa narrativa, que rende aplauso fácil em palco eleitoral, esconde uma contradição incômoda: boa parte do poder de fogo que sustenta o narcotráfico na América Latina – inclusive no Brasil – vem justamente dos Estados Unidos.

Trump ameaça “atacar” países produtores de drogas, mas não fala uma palavra sobre o contrabando de armas fabricadas em seu próprio território e desviadas para cartéis, facções e milícias em toda a região.

  
Donald Trump Daniel Torok/ Official White House Photo
 
 
 

Exemplo claro desta ação está em curso. Estados Unidos mantêm hoje um cerco político e militar sobre a Venezuela, usando o discurso da “guerra às drogas” como principal justificativa. Sob a retórica de combater o narcotráfico ligado ao governo de Nicolás Maduro, Washington reforçou a presença de navios e aviões militares no Caribe e passou a interceptar e atacar embarcações acusadas de transportar drogas rumo ao território americano, muitas vezes sem apresentar publicamente provas consistentes dessas ligações. Na prática, a Venezuela é tratada como alvo preferencial dessa estratégia: é citada em discursos oficiais como “rotas de narcotráfico” e “ameaça à segurança dos EUA”, enquanto navios suspeitos são parados, abordados ou mesmo neutralizados em alto-mar com base em informações de inteligência que raramente são divulgadas em detalhe.

A rota silenciosa: drogas sobem, armas descem

Relatórios da ONU sobre drogas e armas já vêm mostrando há anos um padrão claro:

É a famosa equação da guerra às drogas na América Latina: drogas sobem, armas descem, dinheiro sobe de volta.

No Brasil, investigações da Polícia Federal e estudos de organizações como o Instituto Sou da Paz mostram que armas de fabricação norte‑americana aparecem com frequência em apreensões ligadas ao tráfico de drogas, tanto em favelas do Rio e de São Paulo quanto em fronteiras e rotas usadas pelo PCC e por facções ligadas ao Comando Vermelho. São pistolas de marcas consagradas no mercado civil dos EUA, como Glock e Colt, e fuzis do tipo AR‑15, símbolo da cultura armamentista americana, reaparecendo aqui como instrumentos de massacre em disputas por territórios e rotas de cocaína e maconha.

Não se trata apenas de “alguns contrabandistas isolados”. O próprio governo dos Estados Unidos já admitiu erros graves que ajudaram a armar cartéis. O caso mais emblemático é a operação “Rápido e Furioso” (Fast and Furious), conduzida pelo ATF, órgão de controle de álcool, tabaco e armas. A ideia, oficialmente, era “deixar armas cruzarem a fronteira” para rastrear e desmantelar grandes redes de tráfico no México. O que aconteceu na prática?

Ou seja: enquanto presidentes americanos discursam contra “narcoterroristas estrangeiros”, parte desse terror está armada com produtos made in USA, às vezes com a digital do próprio Estado norte‑americano nos bastidores.

Hipocrisia estratégica: punir o Sul, blindar o Norte

Trump ameaça Venezuela, insulta o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, e acusa o país de ser um “grande negócio de drogas”. De fato, a Colômbia segue como grande produtora de cocaína, e o México é hoje rota central de fentanil, responsável pela maior parte das overdoses nos EUA.

Mas falta à narrativa de força uma peça essencial:

Enquanto isso, lei federal frouxa, brechas em “gun shows”, vendas sem checagem rigorosa de antecedentes e redes de “compradores de fachada” (os famosos straw purchasers) facilitam que armas legalmente produzidas e vendidas escapem do controle e cheguem ao crime organizado – não só nos EUA, mas em toda a América Latina.

Brasil no meio do fogo cruzado

No Brasil, o efeito dessa hipocrisia é concreto.

Armas que saem de lojas americanas, atravessam fronteiras pelo Paraguai, Uruguai ou rotas marítimas, acabam:

Cada fuzil AR‑15 que entra no Brasil, cada pistola importada desviada para o mercado paralelo, aumenta o poder de barganha e de guerra do narcotráfico. E isso não é uma “falha latino‑americana”: é um efeito direto de um sistema global em que os EUA exportam armas e, em troca, importam drogas e violência que acabam ricocheteando por todo o continente. Quando Trump diz que “qualquer país que trafique drogas para dentro do nosso país está sujeito a ataque”, ele vende a imagem de um líder disposto a “defender o povo americano” a qualquer custo.

Mas uma política séria de combate ao narcotráfico exigiria, no mínimo, três frentes que raramente aparecem nesses discursos:

  1. Reduzir drasticamente a demanda interna por drogas, com prevenção, tratamento e políticas de saúde pública.
  2. Fechar as torneiras do dinheiro e das armas, incluindo regras duras sobre exportação, revenda e rastreio de armamento fabricado nos EUA.
  3. Cooperação internacional real, com menos bombardeio e mais inteligência, controle financeiro e fortalecimento institucional nos países onde o crime organizado se enraíza.

Sem isso, a “guerra às drogas” vira só palanque geopolítico:

Traçar o paralelo entre as ameaças de Trump e o contrabando de armas americanas que alimenta o narcotráfico no Brasil e no mundo revela o óbvio que o discurso oficial tenta esconder: não existe “narco” sem arma, e não existe arma em escala industrial sem cadeias legais de produção, venda e omissão regulatória.

Enquanto os Estados Unidos não encararem com seriedade sua responsabilidade como maior produtor e mercado de armas do planeta, toda retórica de ataque a países do Sul soará menos como defesa da vida e mais como teatro para consumo interno, com o preço pago em sangue nas periferias de Bogotá, do Rio, de São Paulo, da Cidade do México – e também nas ruas americanas.