Por Vitória Pilar, conteúdo especial produzido para o A10+
Naquela sexta-feira, 27 de janeiro, Janaína Bezerra estava feliz. E tinha motivos: havia conseguido juntar dinheiro suficiente para comprar o primeiro notebook da família, com quem dividiria com Janiele e Vitória, suas irmãs mais novas. Dali a uma semana, iniciaria a venda de bolos de potes, e com o dinheiro, pagaria as despesas da festa de formatura. Em dois anos, se a burocracia da universidade não atropelasse a grade curricular, seria jornalista pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) – e a primeira pessoa da família a obter um diploma de ensino superior.
Janaína também estava feliz naquela noite, pois, pela primeira vez, iria participar de uma calourada. Ela, que passou quase metade do curso participando de atividades remotas por conta da pandemia, teria a oportunidade de se divertir com outros estudantes naquela noite.
Infelizmente, para os planos de Janaína, não foi nada disso que aconteceu. Naquela madrugada, durante a festa, Thiago Barbosa, mestrando em Matemática, arrastou Janaina para uma sala no Departamento onde ele estudava. Ali, estuprou e quebrou o pescoço da estudante enquanto tentava asfixiá-la. O corpo de Janaína foi encontrado por volta das oito da manhã, por seguranças da UFPI que viram Barbosa carregando-o, já sem vida, pelo campus.
A morte de Janaína foi um dos 25 assassinatos, que até o mês de dezembro de 2023, foram registrados no Piauí, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Piauí. Mais que isso, também reflete um típico perfil de mulheres que são assassinadas: 61,1% das vítimas são negras e mais de 70% possuem entre 18 a 44 anos, estimam dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Janaína, negra e jovem, reúne as principais características desse triste dado.
O caso também ilustra um problema crescente no Brasil, país onde os feminicídios continuam a crescer (foram 1410 casos em 2022, contra 1337 no ano anterior). Filhos e pais de mulheres assassinadas, além de terem que lidar com o luto precoce, muitas vezes perdem a renda da casa. Era o caso de Janaína, que durante a pandemia, com a imposição das aulas remotas, foi beneficiada por um edital que garantiu internet banda larga a estudantes de baixa renda. Foi a primeira vez que a família viu um roteador de internet em casa. Janaína também passou a receber R$ 530 por mês, auxílio destinado a estudantes mais necessitados. A renda da mãe, que vendia batata frita na porta de casa, somada ao dinheiro incerto que o pai conseguia trabalhando aqui e acolá como mecânico, raramente passava dos R$ 1200. O dinheiro mais seguro com que podiam contar era a bolsa universitária. Como maioria das vítimas de feminicídio, Janaína era negra, jovem e pobre.
Uma semana após o crime, a Polícia Civil já havia fechado o inquérito com resposta imediata sobre a tipificação penal do crime. E evidenciou o feminicídio. Mas não foi o que aconteceu na audiência do julgamento do crime, dez meses após sua morte. A condenação, prevista para 70 anos de pena, foi reduzida em 52 anos porque o qualificador de feminicídio, quando há menosprezo e violência em razão do gênero da pessoa, não foi incluído.
Apesar da agilidade processual do caso, que correu cinco vezes mais rápido do que a média de processos de violência doméstica e/ou feminicídio no Piauí e quatro vezes mais rápido que a média nacional, segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o resultado foi avassalador e a acusação prometeu recorrer.
Enquanto isso não acontece, outras duas meninas negras e jovens tentam resgatar os sonhos da irmã que teve a vida interrompida. Janiele e Vitória, que herdaram o computador, o gato e o quarto de Janaína, estão batalhando para entrar no ensino médio. As meninas, com olhos e cabelos parecidíssimos com o da irmã, dormem com medo do passado, mas querem acordar com coragem para o futuro.
As irmãs Bezerra, junto à mãe, Maria do Socorro, têm feito de tudo para que o caso de Janaína fuja à via de regra. Isso porque, em geral, nos processos de feminicídio que tramitam no Tribunal do Júri, a mulher assassinada, quase sempre negra, pobre e periférica, entra apenas nas estatísticas. À típica vítima de feminicídio, resta apenas o aniquilamento. Não é o que acontece aqui, graças ao esforço destas e outras mulheres: um ano após a morte de Janaína, os movimentos sociais e a sociedade civil ainda cobram das autoridades um reajuste da pena e a anulação do primeiro julgamento de Thiago Mayson. E não devem parar tão cedo.
Há tempo para corrigir. Há tempo para salvar a próxima Janaína – mas é urgente.