A derrubada das tarifas de 40% sobre carne bovina, café, açaí, cacau e outros produtos brasileiros, anunciada pela Casa Branca e válida para cargas que entram nos Estados Unidos desde 13 de novembro, encerra um ciclo que começou como “tarifaço punitivo” e termina como gesto econômico e político calculado por Donald Trump. Se no auge da crise a direita brasileira tentou vender o aumento de tarifas como resposta de Washington a Lula — e como prova do suposto prestígio de Jair e Eduardo Bolsonaro junto ao republicano — o desfecho deixa claro que a pauta Bolsonaro é página virada.
O ponto de inflexão está no texto da própria ordem executiva. Trump registra que, em 6 de outubro deste ano, manteve uma conversa telefônica com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na qual ambos concordaram em “iniciar negociações para abordar as preocupações identificadas na Ordem Executiva 14323” — justamente a que havia disparado o tarifaço contra os produtos brasileiros. O documento afirma ainda que as tratativas seguem em andamento e que, a partir de recomendações da equipe econômica e comercial, “certas importações agrícolas do Brasil não deveriam mais estar sujeitas à alíquota adicional ad valorem”, entre outros motivos, pelo “progresso inicial” nessas conversas. Resultado: o que antes era sobretaxado em 50%, depois caiu a 40% e agora, no caso de itens brasileiros como carne e café, foi a zero.
Quando o tarifaço de 50% contra todas as exportações brasileiras foi anunciado, em 2025, a ala bolsonarista comemorou nos bastidores. A ideia era simples: vender a narrativa de que Trump estaria “punindo” Lula e o PT, associando tarifas e sanções a episódios como o julgamento de Jair Bolsonaro, já condenado e com embargos rejeitados pelo STF, em processos ligados a ataques ao sistema eleitoral e à democracia.
Eduardo Bolsonaro, que foi para os Estados Unidos e se colocou como espécie de “ponte” com a direita americana, alimentava publicamente essa ideia. Falava em acesso direto a Trump, se vangloriava de ter contato com o entorno do republicano e defendia que o ex-presidente americano deveria “endurecer” com o Brasil de Lula, sugerindo retaliações comerciais como forma de pressão política. Em redes e círculos aliados, o tarifaço passou a ser apresentado como uma espécie de troféu: a prova de que Trump ainda “ouviria” o bolsonarismo.
Na prática, a leitura estratégica não se sustentou. As sanções econômicas e a sobretaxa sobre produtos brasileiros tinham muito mais relação com a agenda interna de Trump — proteção a setores do agro americano, retórica de dureza em relação a parceiros comerciais e uso político da pauta econômica — do que com qualquer cruzada personalizada contra Lula. E, à medida que o quadro doméstico nos Estados Unidos se deteriorou, com inflação persistente em alimentos, queda de popularidade e acirramento do calendário eleitoral, a lógica mudou de lado.
O encontro na ONU, a virada de chave e o retorno da diplomacia
O ponto simbólico de virada foi o breve encontro entre Trump e Lula nos bastidores da Assembleia-Geral da ONU. O que começou como uma conversa rápida em Nova York evoluiu para um novo contato, mais estruturado, e culminou no telefonema de 6 de outubro mencionado na ordem executiva. É a partir desse momento que o Brasil deixa de ser alvo genérico do tarifaço e passa a ser tratado como parceiro com quem vale a pena negociar uma solução.
A Casa Branca converteu, então, uma decisão antes vendida como “castigo” em moeda de troca diplomática e instrumento de política econômica interna. Em vez de responder a impulsos de um grupo político brasileiro específico, o governo americano passou a olhar para o Brasil como grande fornecedor capaz de ajudar a derrubar preços de alimentos e, ao mesmo tempo, compor o discurso de um acordo negociado “de presidente para presidente”.
É aí que fica mais evidente o isolamento de Bolsonaro. O ex-presidente, já condenado, com embargos rejeitados pelo STF e cercado por processos que o empurram para a margem do sistema político, perde utilidade como interlocutor relevante. Sua pauta virou assunto doméstico, resolvido em tribunais brasileiros. Para Trump, o que importa agora é a equação entre inflação, base eleitoral e competitividade econômica — não a guerra cultural da extrema direita brasileira.
Consumo interno, inflação e campanha: por que Trump recuou
O contexto econômico americano ajuda a explicar a rapidez da mudança. Mesmo após ciclos de alta de juros, a inflação de alimentos segue pressionando o bolso dos eleitores. Nos índices de preços ao consumidor (CPI), a categoria “food at home” continua acima do conforto político desejado. Carne e café — justamente os produtos em que o Brasil é forte — são itens simbólicos na percepção de custo de vida.
Trump entra em um ciclo eleitoral em que precisa, ao mesmo tempo, manter apoio de setores do agro americano e dar respostas visíveis ao eleitor urbano e suburbano, que sente a alta de preços no supermercado. Ao zerar tarifas para um grande fornecedor como o Brasil:
- aumenta a oferta de produtos como carne e café no mercado interno, ajudando a reduzir pressão de preços;
- vende para o eleitorado a ideia de que está “fazendo algo concreto” para baratear a comida;
- apresenta o recuo como fruto de uma negociação bilateral bem-sucedida, não como capitulação.
Na prática, a derrubada das tarifas é menos sobre Bolsonaro, e mais sobre a necessidade de Trump de recuperar fôlego político, em que pesquisas já indicam desgaste entre parte de seus próprios eleitores, cansados de inflação alta e incerteza econômica.
Enquanto isso, no Brasil, o bolsonarismo assiste a esse rearranjo à margem. As fotos dos encontros de Bolsonaro com Trump — duas reuniões presenciais que Eduardo Bolsonaro vendeu, à época, como passaporte para um “diálogo sem intermediários” com a Casa Branca — perderam peso prático. A intermediação que o clã dizia ter não foi capaz nem de impedir o tarifaço no início, nem de pautar o recuo agora.
Mais do que isso: com Jair Bolsonaro condenado, inelegível e acumulando derrotas judiciais, e com Eduardo orbitando a política americana sem cargos formais, a “pauta Bolsonaro” passou a ser vista em Washington como assunto interno brasileiro, a ser resolvido por tribunais e instituições nacionais. Não é mais variável relevante na equação comercial ou diplomática dos EUA com o Brasil.
O que emerge no lugar é um eixo institucional: Trump e Lula negociando diretamente, com equipes técnicas dialogando sobre tarifas, fluxo de comércio e eventuais contrapartidas. A mudança de rota mostra que, quando a pressão do consumo interno e o cálculo eleitoral apertam, o que pesa é a capacidade de um país garantir fornecimento estável, negociar em alto nível e oferecer previsibilidade — não a proximidade ideológica com grupos políticos em declínio.
No fim, o tarifaço que bolsonaristas tentaram usar como arma contra o governo Lula acabou se transformando em oportunidade: o Brasil sai com tarifas zeradas em produtos-chave, o agronegócio ganha espaço no maior mercado do mundo e Lula aparece como o presidente que “virou o jogo” numa negociação direta com a Casa Branca. Para Trump, o recado a seu eleitorado é que está agindo para aliviar preços. Para Bolsonaro, resta assistir de fora: o ciclo em que seu nome era usado como peça nas disputas internacionais claramente ficou para trás.