Ex-prefeitos e construtora são condenados por irregularidades em obra de esgotamento sanitário. A conta ficou para o povo de Bocaina

De acordo com o TCU metade dos recursos federais desapareceu sem conclusão da obra; penalidades incluem devolução de valores e multas

O município de Bocaina, no interior do Piauí, tornou-se exemplo nacional de como a má gestão e a falta de fiscalização podem comprometer a vida de centenas de famílias. O drama se desenrola em torno de uma promessa de saneamento básico nunca cumprida: em 2011, Bocaina firmou com a Funasa um convênio de R$ 500 mil para implantação do sistema de esgotamento sanitário, mas a obra jamais saiu do papel além da metade — e a prestação de contas nunca chegou à União.

O caso, que arrastou três gestões municipais e uma construtora para análise do Tribunal de Contas da União, resultou agora em condenações históricas, detalhadas pelo Acórdão 4023/2024-TCU-Primeira Câmara, como apurou a coluna.

  

Ex-prefeitos e construtora são condenados por irregularidades em obra de esgotamento sanitário. A conta ficou para o povo de Bocaina
Divulgação

   

O que aconteceu com o dinheiro público?

Segundo a investigação, dos R$ 500 mil repassados pela Funasa, metade foi aplicada em obras comprovadas, como 60 melhorias sanitárias domiciliares. Mas o restante, pago em 2016 para a construtora Lima Verde & Silva (atual Silva & Rocha Serviços e Construções Ltda.), desapareceu sem que nenhum serviço novo fosse realizado. As fotos e relatórios enviados pela Funasa mostraram que, de 2015 a 2018, o canteiro da obra permaneceu praticamente inalterado.

Durante a análise do caso, a antiga Secretaria de Controle Externo de Tomada de Contas Especial (SecexTCE) destrinchou o fluxo do dinheiro público na conta do convênio. O primeiro repasse, de R$ 250 mil, caiu na conta do município em 29 de maio de 2012, e, ao longo da gestão de José Luiz de Barros, parte desse valor foi utilizada até o último débito registrado, em 11 de junho de 2015, no valor de R$ 24.938,76. No final de 2015, veio o segundo aporte de R$ 250 mil. Já no início de 2015, uma vistoria técnica da Funasa constatou que 50,12% das obras haviam sido executadas — percentual correspondente, basicamente, à primeira metade dos recursos. Assim, ficou evidente para os técnicos que, ao menos quanto à primeira parcela, o uso do dinheiro foi justificado e não cabia débito ao ex-prefeito José Luiz de Barros.

No entanto, a situação mudou após seu falecimento em março de 2016. Pouco tempo depois, em 5 de abril de 2016, a conta do convênio foi praticamente esvaziada com uma transferência online de R$ 199.510,08 para a empresa responsável pela obra. Mesmo assim, as vistorias da Funasa — incluindo uma em julho de 2018 — mostraram que as obras seguiam paradas, sem avanço físico além dos mesmos 50% registrados anos antes.

Diante desse cenário, a Funasa foi acionada para detalhar o que, de fato, havia sido entregue. A resposta oficial confirmou a execução de 60 melhorias sanitárias domiciliares e a instalação da placa da obra, mas reforçou que a execução não passou de 50,12% do planejado, embora todo o recurso já tivesse sido transferido para a empresa. O cruzamento dos dados mostrou que os valores pagos à Lima Verde & Silva (depois Silva & Rocha Serviços e Construções Ltda.) batiam exatamente com o que havia sido, de fato, executado: cerca de R$ 250,6 mil, pagos em diferentes datas. Já os quase R$ 200 mil restantes, transferidos à empresa após o falecimento de José Luiz de Barros, não tiveram nenhuma contrapartida visível em serviços realizados — o que levou à responsabilização solidária do espólio do ex-prefeito Nivardo Silvino de Sousa (que assumiu o cargo após a morte de José Luiz) e à citação da própria empresa para devolver os valores recebidos sem execução das obras.

Apenas a construtora apresentou defesa, mas seus argumentos foram rejeitados pelo tribunal.

Quem são os responsabilizados e quais as penas?

Francisco de Macedo Neto (2009-2012):

Apesar de citado no início do processo, ficou comprovado que não chegou a gerir os recursos — pois a obra só começou após o fim de seu mandato. Por isso, não recebeu penalidade.

José Luiz de Barros (2013-2016):

Foi o gestor durante o início e metade das obras e da aplicação da primeira parcela dos recursos. Faleceu antes da conclusão da análise, mas o TCU reconheceu que, durante sua gestão, parte do dinheiro foi usada corretamente. Por isso, teve suas contas consideradas regulares e recebeu quitação plena.

Nivardo Silvino de Sousa (assumiu após 2016):

Depois da morte de José Luiz, coube a Nivardo dar destino à segunda parcela, repassada à construtora, mesmo sem comprovação de serviço correspondente. Por isso, foi condenado a devolver, junto com a empresa, R$ 199.510,08 aos cofres públicos, valor corrigido e com juros, além de responder com o espólio (patrimônio transferido em vida). O ex-Prefeito faleceu em agosto de 2018.

Erivelto de Sá Barros (2017-2020):

Responsável por prestar contas e concluir o convênio, também foi condenado por contas irregulares e recebeu multa de R$ 3.000,00 a ser paga ao Tesouro Nacional.

Silva & Rocha Serviços e Construções Ltda. (antiga Lima Verde & Silva):

A empresa, além de ter que devolver solidariamente os R$ 199.510,08 com o ex-prefeito Nivardo, foi multada em R$ 15.000,00 por ter recebido o valor sem executar os serviços previstos.

Por que isso importa para Bocaina e para o Brasil?

No fim, o que deveria ser um avanço para o saneamento da cidade virou uma vergonha administrativa e desperdício de dinheiro público. Boa parte das famílias de Bocaina segue sem acesso a um sistema decente de esgoto, enquanto as dívidas, multas e processos se arrastam. O TCU autorizou o parcelamento dos débitos, mas não eximiu os responsáveis de responder na Justiça. O Ministério Público Federal e o Ministério das Cidades já foram notificados.

Para além das penalidades, fica o alerta: sem fiscalização efetiva, os recursos federais se perdem e a população é a principal prejudicada.

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