O caso investigado pelo Ministério Público em Bom Princípio do Piauí joga luz sobre uma prática antiga e persistente na política brasileira: o uso da máquina pública como moeda de troca para fortalecer alianças e consolidar apoios. Nomeações de vereadores em cargos comissionados dentro da própria Prefeitura, sem afastamento do mandato, não são apenas uma falha burocrática — são um sintoma de algo mais grave: a transformação de funções públicas em instrumentos de favorecimento político.
Em vez de priorizar a eficiência da gestão, o que se vê é a criação de espaços privilegiados para manter apoios estratégicos. E não é difícil entender por quê. O vereador, além de ser um fiscal natural da atuação do prefeito, tem nas mãos o poder do voto, tanto no Legislativo municipal quanto no convencimento de eleitores em época de campanha. Tornar esse agente político também um beneficiário da estrutura da Prefeitura é, em última análise, reduzir a independência entre os poderes e enfraquecer os mecanismos de controle que deveriam garantir transparência e legalidade.
Era esse modelo clientelista que estava se desenhando entre a Prefeitura e a Câmara de Bom Princípio do Piauí, mas acabou não funcionando. O Prefeito Apolinário Moraes (PSB) beneficiou com cargos na Secretaria de Saúde quatro vereadores que, juntos, somaram 1.116 votos na última eleição, ou seja, quase a metade da votação que elegeu Apolinário Moraes (3.196 votos): Márcio Vaqueiro (PODE), Toinha Figueiredo (PODE), Jacinto Costa Moraes (MDB) e o filho da Presidente do legislativo, Júnior da Noélia (PSB). A farra foi denunciada por outro parlamentar. O Prefeito Apolinário ainda tentou manter a ilegalidade através de um projeto enviado à Câmara Municipal, mas acabou vetado pelo parlamento.
O caso foi parar no Ministério Público, por meio da 1ª Promotoria de Justiça de Buriti dos Lopes, que instaurou um procedimento administrativo para apurar suspeitas de irregularidades. A própria Prefeitura reconheceu a incompatibilidade, exonerou os vereadores e informou ter aberto procedimento administrativo para avaliar a devolução de valores recebidos indevidamente. No entanto, não apresentou documentos essenciais, como declarações de não acumulação, folhas de pagamento completas, registros de frequência e a íntegra do processo de devolução.
Segundo apurou a coluna de Bastidores, a repercussão negativa e a certeza da ilegalidade levou a exoneração dos quatro vereadores dos cargos na Secretaria Municipal de Saúde e a devolução do dinheiro recebido irregularmente já teria acontecido. O MP, no entanto, destaca que a ausência dessas informações inviabilizou a conclusão da apuração inicial, obrigando a conversão da Notícia de Fato em Procedimento Administrativo.
O promotor de Justiça Adriano Fontenele Santos determinou ainda novas diligências, incluindo: Requisição à Prefeitura, pela terceira vez, para envio do procedimento administrativo completo sobre a devolução dos valores pagos entre janeiro e março de 2025; Solicitação à Câmara Municipal sobre as medidas adotadas em relação à conduta dos vereadores, que teriam violado o artigo 37 da Constituição Federal e dispositivos do Decreto-Lei nº 201/1967; Comunicação ao Conselho Superior do Ministério Público e ao Centro de Apoio Operacional de Combate à Corrupção (CACOP).
Prática nada republicana e beira a imoralidade
O cargo comissionado, em muitos municípios, deixa de ser uma ferramenta de gestão e se transforma em “moeda de gratidão”. O resultado é um círculo vicioso: o gestor distribui benefícios a aliados que, em troca, oferecem blindagem política e apoio eleitoral. Quem perde é a população, que vê a administração pública se distanciar de sua função essencial — servir ao interesse coletivo — para se tornar peça em um jogo de poder.
Casos como esse revelam também o desprezo pela ética pública. Quando vereadores acumulam funções sem a devida legalidade, não se trata apenas de discutir compatibilidade de horários, mas de reconhecer que o cargo legislativo exige dedicação e autonomia. A mistura de papéis cria uma zona cinzenta que ameaça os princípios constitucionais da moralidade e da separação dos poderes.
No fim, a prática escancara como o voto — a principal arma do eleitorado — também se torna arma política de quem ocupa mandato. O apoio parlamentar é “comprado” com cargos, e os gestores garantem proteção em votações importantes. O eleitor, que confiou seu voto esperando independência, descobre que sua escolha foi usada como escudo para práticas que fragilizam a democracia local.
A investigação do Ministério Público não atinge apenas quatro vereadores de um município do interior. Ela simboliza um mecanismo estrutural que precisa ser combatido: a apropriação de cargos públicos para manter favores políticos. A responsabilização, caso confirmadas as irregularidades, será importante. Mas ainda mais necessário é o debate público sobre como impedir que a máquina pública continue sendo usada como extensão de interesses eleitorais.