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O caso que chegou à 2ª Promotoria de Justiça de São Raimundo Nonato expõe um problema cada vez mais comum na política brasileira: parlamentares que usam a tribuna e a chamada “imunidade parlamentar” para acusar, atacar e espetacularizar denúncias sem apresentar provas concretas. Foi exatamente isso que aconteceu com o vereador Nunes Santos (PP), autor de um discurso em plenário em que afirmou existir uma “prática comum” de emissão de notas fiscais irregulares no Município de São Raimundo Nonato. Em 2022 o parlamentar foi acusado de quebrar o nariz da sua companheira com um murro durante um evento esportivo em Bonfim do Piauí. Foi registrado Boletim de Ocorrência, exame de corpo de delito na vítima, notas de repúdio da Prefeitura e sua exoneração de cargo de Secretário, a Câmara afirmou, em nota, que iria apurar e tomar providências cabíveis. No entanto, até hoje não se tem o resultado da investigação policial e ele continua no mandato falando o que sabe e o que não sabe.
A fala do vereador mais bem votado em 2024, com 1.161 votos, registrada em vídeo e enviada por um denunciante, levou o Ministério Público do Piauí a abrir um Procedimento Preparatório de Inquérito Civil (SIMP nº 000453-440/2025). A acusação era pesada: segundo a representação, o município estaria emitindo notas fiscais em nome de terceiros, diferentes dos verdadeiros prestadores de serviço – um indício clássico de fraude, desvio e “nota fria”. Diante da gravidade do que foi dito na Câmara Municipal, a promotoria quis saber: há fatos concretos por trás do discurso ou tudo ficou apenas na palavra do vereador?

Na tentativa de esclarecer a situação, o promotor Romerson Maurício de Araújo tomou duas providências principais. Primeiro, designou uma audiência extrajudicial com o próprio vereador Nunes, para que ele explicasse, fora dos microfones, o que sabia e apresentasse elementos mínimos: datas, contratos, empresas, nomes de terceiros usados nas notas. Segundo, expediu ofício à Controladoria-Geral do Município (ou órgão de controle interno equivalente), pedindo informações objetivas: se havia procedimentos internos sobre notas fiscais fraudulentas e relatórios de auditoria ou fiscalização sobre as notas da Secretaria de Administração e Finanças nos três meses anteriores.
A resposta institucional foi reveladora: a Controladoria não respondeu ao ofício, o que por si só já mostra a fragilidade e a dependência política do controle interno em muitos municípios, sobretudo do interior. Mas o ponto mais sensível apareceu na oitiva do vereador. Em audiência, Nunes confirmou estar em seu quarto mandato, disse ter sido secretário de Administração entre 2017 e 2019, no governo da ex-prefeita Carmelita, e que chegou a ser convidado a assumir a Secretaria de Serviços Urbanos na atual gestão de Rogério Castro (MDB). Quando foi perguntado, de forma direta, sobre o conteúdo das declarações feitas em plenário, suas respostas foram classificadas pelo promotor como evasivas. Ao invés de sustentar as acusações com exemplos e documentos, o vereador passou a atribuir o discurso a “animosidades políticas”, ou seja, ao clima de disputa e rivalidade locais.
Na prática, isso significa que o parlamentar usou a tribuna para afirmar a existência de um suposto esquema habitual de emissão de notas em nome de terceiros – uma acusação que atinge a prefeitura, servidores, fornecedores e a credibilidade da gestão – mas, quando formalmente cobrado por um órgão de fiscalização, não apresentou nada de concreto. Sem fatos específicos, contratos identificados, períodos delimitados ou empresas mencionadas, o Ministério Público concluiu que não havia justa causa para transformar o procedimento em Inquérito Civil. Pela própria regra que orienta a atuação do MP, não cabe ao órgão agir como “auditoria geral” baseada em falas genéricas de parlamentares. Sua função é investigar fatos determinados, não sair vasculhando todo o sistema de notas fiscais do município apenas porque alguém falou, sem prova, que “é assim”.
Esse padrão de comportamento é o que preocupa. A imunidade parlamentar existe para proteger o debate político – permitindo que vereadores, deputados e senadores possam cobrar, denunciar e criticar sem medo de retaliação por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato. Mas, na prática, em muitos casos, essa proteção tem sido usada como um escudo para lançar acusações graves sem responsabilidade, sem prova e sem compromisso com a verdade. Fala-se de “esquema”, “corrupção”, “fraude” em tom categórico no microfone; depois, na frente do Ministério Público, tudo vira “animosidade política”.
O promotor registrou ainda um outro ponto importante: em cidades como São Raimundo Nonato e tantos outros municípios do interior, o controle interno costuma ser frágil e dependente do prefeito. O controlador interno, que deveria ser o primeiro a apontar irregularidades, muitas vezes é visto como alguém de confiança do gestor, o que pode limitar o alcance de sua atuação. A própria ausência de resposta da Controladoria ao ofício do MP é sintoma dessa realidade. Por isso, foi aberto um procedimento administrativo paralelo (000021-095/2025) para levantar como funciona o sistema de controle interno na prefeitura e qual é, de fato, a independência do controlador.
No fim, o Ministério Público decidiu arquivar o procedimento sobre as supostas notas fiscais fraudulentas, justamente por falta de base mínima para seguir adiante. O caso será enviado ao Ministério Público de Contas, que atua junto ao Tribunal de Contas do Estado, para que, se houver alguma irregularidade objetiva detectada em auditorias, as informações sejam devolvidas à promotoria. Mas, até este momento, a situação concreta é a seguinte: não há prova de que o esquema denunciado em plenário exista, e o próprio autor da acusação, quando teve a chance de detalhar o que disse, recuou e não sustentou as palavras.
E o que acontece com esses parlamentares? Em regra, nada, no Piauí e no Brasil.
Raramente se vê um Conselho de Ética – seja de Câmara Municipal, Assembleia ou Congresso – funcionando de fato para apurar abuso da imunidade. Denúncias claramente sem prova terminam sem qualquer consequência disciplinar. Não há cassação, não há suspensão, não há sequer advertência. A cultura é de normalizar que, “na política”, vale tudo: exagerar, distorcer, mentir, porque, afinal, “é da disputa”.
Assim, a imunidade, pensada para proteger a liberdade de expressão responsável, acaba acobertando uma prática nefasta: o uso sistemático da mentira como instrumento de ataque, sem qualquer custo para quem acusa e com enorme dano para quem é acusado. Em nome da liberdade de expressão, abre-se espaço para a liberdade de difamar, nem que seja para mentir. O resultado vai além dos indivíduos atingidos; corrói também a confiança da população nas instituições, que passam a ser vistas sempre como suspeitas, sempre corruptas, sempre inimigas – ainda que nenhuma prova concreta tenha sido apresentada.
O caso de São Raimundo Nonato é um recorte didático. Um vereador sobe à tribuna, lança suspeitas graves, atinge a imagem da prefeitura e de servidores. Quando o Ministério Público bate à porta pedindo fatos, o discurso esvazia, vira “animosidade”. Sem elementos, o inquérito é arquivado – e o parlamentar segue normalmente, sem qualquer punição ética. Fica a sensação incômoda: quem mente protegido pela tribuna segue em frente; quem é alvo da mentira que arque com o dano à reputação.
Enquanto o sistema político e os próprios Parlamentos não encararem esse desvirtuamento da imunidade parlamentar, a tribuna continuará sendo usada, muitas vezes, não como instrumento de fiscalização séria, mas como palco de ataque fácil. E a mentira seguirá sentada confortavelmente ao lado do microfone, travestida de “liberdade de expressão”.
Fonte: Portal A10+